IOF – AFAC – ACÓRDÃO CARF Nº 3002-003.781
CARF afasta cobrança de IOF sobre AFAC e reconhece inaplicabilidade do prazo de 120 dias do Parecer Normativo CST 17/1984
por João Vitor Janson publicado em 13/10/2025O Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (CARF) proferiu, em 28/08/2025, decisão unânime no julgamento do Acórdão nº 3002-003.781, referente ao Processo 10925.720732/2015-36, sob relatoria da Conselheira Gisela Pimenta Gadelha Dantas. A decisão reconheceu que o mero descumprimento do prazo de 120 dias, previsto no Parecer Normativo CST 17/1984, não constitui fundamento suficiente para descaracterizar operações de Adiantamento para Futuro Aumento de Capital (AFAC) e determinar a incidência do Imposto sobre Operações Financeiras (IOF).
Inicialmente, abordaremos a conceituação jurídica dos institutos envolvidos – AFAC e mútuo – e a incidência do IOF sobre essas operações, estabelecendo os parâmetros normativos que orientam a distinção entre as figuras jurídicas em questão. Em seguida, analisaremos as particularidades do caso concreto e os fundamentos utilizados no julgamento. Por fim, apresentaremos considerações sobre os impactos e a relevância da decisão para o planejamento tributário empresarial.
Do AFAC, do Mútuo e da Incidência do IOF
O AFAC constitui operação societária mediante a qual sócios ou acionistas transferem recursos financeiros à sociedade, com o compromisso de que tais valores serão posteriormente convertidos em aumento de capital social. Trata-se de instituto consolidado na prática empresarial brasileira, amplamente utilizado para capitalização de empresas sem a necessidade de formalização imediata do aumento de capital, permitindo maior agilidade na disponibilização de recursos para a atividade operacional.
A natureza jurídica do AFAC diferencia-se do contrato de mútuo. De um lado, conforme definido no art. 586 do Código Civil, o mútuo constitui modalidade de empréstimo, pelo qual o mutuante transfere a propriedade de bem fungível com obrigação de restituição de coisa do mesmo gênero, qualidade e quantidade. De outro lado, o AFAC, representa adiantamento patrimonial vinculado ao futuro ingresso definitivo de capital na sociedade. No mútuo há relação de crédito e débito entre as partes, no AFAC, há antecipação de integralização de capital social.
O IOF, encontra previsão constitucional no art. 153, V, da Constituição Federal, sendo regulamentado pelo Decreto nº 6.306/2007 e pela Lei nº 9.779/1999. O art. 13 da referida lei estabelece que os mútuos de recursos financeiros entre pessoas jurídicas sujeitam-se à incidência do IOF segundo as mesmas normas aplicáveis às operações de financiamento e empréstimos praticadas por instituições financeiras.
O ponto central que se apresenta na jurisprudência administrativa reside na correta caracterização da operação: quando os valores transferidos entre empresas configuram legítimo AFAC e quando se desnaturam em operação de mútuo sujeita ao IOF? Esta distinção reveste-se de importância prática, considerando que a incidência do IOF representa ônus tributário adicional às operações empresariais, com impacto no custo de capitalização das sociedades.
O Parecer Normativo CST nº 17/1984 emergiu no contexto da legislação do imposto de renda, especificamente para disciplinar situações de distribuição disfarçada de lucros. À época, a legislação tributária tratava como hipótese de distribuição disfarçada de lucros o empréstimo de dinheiro a pessoa ligada, se a sociedade mutuante tivesse, na data do negócio, lucros acumulados ou reservas de lucros, art. 60, V, do Decreto-lei nº 1.598/1977.
O referido parecer estabeleceu que, caso a capitalização não ocorresse na primeira assembleia geral extraordinária ou alteração contratual, nem viesse a ser efetivada no prazo máximo de 120 dias contados do encerramento do período-base da sociedade tomadora dos recursos, o AFAC seria equiparado a mútuo para fins de imposto de renda.
Fundamental compreender que este normativo nasceu em contexto inflacionário específico e com finalidade exclusivamente relacionada ao imposto de renda, visando prevenir a distribuição disfarçada de lucros mediante operações de AFAC sem perspectiva real de aprovação do aumento de capital.
A Instrução Normativa SRF nº 127/1988 incorporou parcialmente este entendimento, mas seu alcance permaneceu restrito ao imposto de renda. Com o fim da correção monetária das demonstrações financeiras, decretado pela Lei nº 9.249/1995, a instrução perdeu aplicação prática, tendo sua revogação sido expressamente reconhecida pela Instrução Normativa SRF nº 79/2000.
A controvérsia instaurada na prática fiscal refere-se à tentativa da administração tributária de transpor os critérios do Parecer Normativo CST 17/1984, originalmente concebido para o imposto de renda, para a esfera do IOF. Esta transposição, conforme se demonstrará, carece de fundamento legal adequado e caracteriza extensão analógica indevida da norma tributária.
Caso Concreto e Fundamentos da Decisão
A origem da controvérsia decorreu de autuação fiscal lavrada pela Receita Federal do Brasil (RFB) contra a empresa Master Agropecuária Ltda., para cobrança do IOF no montante de R$ 410.013,39, relativo ao ano-calendário de 2011. A fiscalização sustentou que os aportes de recursos financeiros efetuados sistematicamente na conta contábil “12331100 – Conta Corrente Coligadas/Controladas” configurariam operações de mútuo sujeitas à incidência do IOF.
O contexto fático revelou operações de reorganização societária complexas. Em novembro de 2010, a empresa Master Agropecuária Ltda. adquiriu a empresa Quintares, posteriormente denominada Master Agroindustrial Ltda. Durante o ano de 2011, a recorrente aportou recursos financeiros na empresa adquirida e, em setembro do mesmo ano, subscreveu quotas no valor de R$ 3.993.500,00, conforme registrado em alteração contratual. O montante foi devidamente contabilizado nas contas patrimoniais da sociedade.
Posteriormente, em janeiro de 2012, a Master Agropecuária Ltda. foi cindida parcialmente, originando a Master Agroindustrial Ltda. e a Master Genética Animal Ltda. Os valores constantes da conta “12331100 – Conta Corrente Coligadas/Controladas” foram integralmente transferidos à Master Agroindustrial, sendo primeiramente contabilizados em contas transitórias de cisão e, posteriormente, registrados em contas do patrimônio líquido para fins de aumento de capital.
A empresa autuada apresentou impugnação alegando que os recursos transferidos constituíam legítimo AFAC, e não empréstimos sujeitos ao IOF. Sustentou que todo o valor investido foi efetivamente utilizado no aumento de capital social, não retornando ao patrimônio da recorrente, e que não se poderia exigir o cumprimento das condições previstas no Parecer Normativo CST nº 17/1984, considerando tratar-se de norma voltada ao imposto de renda sem aplicação à legislação do IOF.
A decisão de primeira instância administrativa, proferida pela 29ª Turma da Delegacia da Receita Federal de Julgamento, julgou improcedente a impugnação, mantendo o crédito tributário. O acórdão de primeira instância entendeu que o contribuinte não comprovou adequadamente o AFAC por meio da devida formalização, considerando que os valores transferidos e registrados em conta-corrente corresponderiam a mútuo sujeito ao IOF. Ademais, a decisão destacou que a concessão de mútuo entre empresas do mesmo grupo econômico não afastaria a incidência do imposto.
Nesse contexto, a contribuinte interpôs recurso voluntário ao CARF, reiterando todos os argumentos apresentados na impugnação e juntando documentação comprobatória da efetiva capitalização dos valores.
A relatora do acórdão, Conselheira Gisela Pimenta Gadelha Dantas, fundamentou o provimento do recurso voluntário em análise técnica da documentação apresentada. Inicialmente, a decisão esclareceu que o Parecer Normativo CST nº 17/1984 não possui relação com a legislação do IOF, tendo sido editado exclusivamente para disciplinar questões relacionadas ao imposto de renda em contexto específico de combate à distribuição disfarçada de lucros.
A relatora destacou precedente relevante do próprio CARF, no Acórdão 3302-006.035, de relatoria do Conselheiro Jorge Lima Abud, que examinou detalhadamente a finalidade do Parecer Normativo CST 17/1984. Conforme esclarecido naquele julgado, o referido parecer nasceu em ambiente inflacionário e visava prevenir que empresas utilizassem AFAC como instrumento de distribuição disfarçada de lucros, postergando indefinidamente a capitalização e evitando o reconhecimento da correção monetária do valor mutuado.
O acórdão enfatizou que não existe, na legislação específica do IOF, qualquer norma que estabeleça prazo limite para capitalização de AFAC. A Lei nº 9.779/1999, que disciplina a incidência do IOF sobre operações de crédito entre pessoas jurídicas, não faz qualquer menção a prazo de capitalização como critério de caracterização de mútuo. Assim, na ausência de previsão legal específica, mostrar-se-ia ilegítima a cobrança do imposto fundamentada exclusivamente no descumprimento do prazo de 120 dias.
A decisão ressaltou que o elemento determinante para caracterização do AFAC reside na efetiva capitalização dos valores, devidamente comprovada mediante registros contábeis, alterações no contrato social da empresa e atos arquivados na junta comercial. No caso concreto, o livro diário da Master Agroindustrial Ltda., referente ao período de 01/06/2011 a 31/12/2012, apresentava registros claros de subscrição e integralização de capital em 30/09/2011, bem como as transferências de valores relativos à cisão parcial em 02/01/2012.
As alterações contratuais juntadas ao processo comprovaram que as operações de reorganização societária, com a aquisição da empresa Quintares e a posterior cisão parcial, demonstraram que os valores adiantados foram efetivamente convertidos em capital social. A documentação societária e contábil apresentada revelou que não houve simples empréstimo com obrigação de devolução, mas legítimo aporte de capital com intenção societária de capitalização da empresa controlada.
O Colegiado, por unanimidade de votos, acolheu integralmente os fundamentos da relatoria, reconhecendo que as transferências de valores entre as empresas possuíam natureza de AFAC. Consequentemente, afastou a caracterização de mútuo em relação às transferências financeiras ocorridas entre a recorrente e suas controladas, determinando a não incidência do IOF sobre as operações questionadas.
Considerações Sobre a Decisão
O Acórdão nº 3002-003.781 representa decisão tecnicamente irrepreensível e juridicamente necessária, fortalecendo a segurança jurídica no planejamento societário e tributário das empresas brasileiras. A decisão merece acolhida integral por diversos fundamentos que serão explicitados a seguir.
Em primeiro lugar, a decisão prestigia o princípio da legalidade tributária, expressamente consagrado no art. 150, inciso I, da Constituição Federal e no art. 97 do Código Tributário Nacional (CTN). Conforme estabelecem estes dispositivos, somente a lei pode instituir tributos, definir seus fatos geradores, bases de cálculo e contribuintes. A transposição de critérios estabelecidos em parecer normativo voltado ao imposto de renda para a legislação do IOF, sem qualquer previsão legal específica, configura clara violação ao princípio da estrita legalidade tributária.
A ausência de norma legal do IOF que estabeleça prazo para capitalização de AFAC não pode ser suprida mediante interpretação analógica ou extensiva. O CTN, em seu art. 108, §1º, veda expressamente o emprego da analogia para exigir tributo não previsto em lei. Assim, na falta de disposição legal específica sobre o tema, não pode o fisco criar requisito adicional mediante aplicação de norma infralegal concebida para tributo diverso, sob pena de violação ao jurídico tributário.
Ademais, a decisão reconhece adequadamente a distinção entre AFAC e mútuo. Enquanto o mútuo constitui relação obrigacional de natureza creditícia, com obrigação de devolução do valor emprestado, o AFAC representa antecipação de capital social, com ânimo societário de incorporação patrimonial definitiva. A caracterização da operação não pode desconsiderar sua substância econômica e sua real finalidade, de tal sorte que se deve privilegiar a análise da documentação societária e contábil que comprove a efetiva destinação dos recursos.
O entendimento consolidado no acórdão apresenta significativa importância prática para o ambiente empresarial brasileiro. As operações de capitalização de empresas, especialmente em contextos de reorganização societária, frequentemente demandam procedimentos complexos que não se concluem no prazo exíguo de 120 dias. Exigências societárias, necessidade de avaliação de ativos, questões relacionadas à governança corporativa e diversos outros fatores podem justificar prazos mais dilatados para conclusão formal do aumento de capital.
A imposição arbitrária de um prazo sem previsão legal específica criaria insegurança jurídica significativa e, consequentemente, desestimularia operações legítimas de capitalização empresarial ao onerar indevidamente contribuintes que atuam em conformidade com a legislação societária.
É relevante destacar que a decisão não abre espaço para práticas abusivas. O acórdão não afasta a necessidade de comprovação efetiva da capitalização, nem autoriza o uso indiscriminado da figura do AFAC como instrumento de planejamento tributário agressivo. Ao contrário, a decisão exige documentação robusta que comprove inequivocamente a destinação dos recursos para aumento de capital social, preservando a capacidade fiscalizatória da administração tributária de coibir eventuais simulações.
A jurisprudência do CARF vem se consolidando neste sentido, conforme demonstram precedentes citados no próprio acórdão. O Acórdão nº 3402-009.021, da 2ª Turma Ordinária da 3ª Seção, já havia reconhecido que “na falta de uma norma específica do IOF que imponha prazo limite para a capitalização dos chamados AFAC, é ilegítima a cobrança do imposto por suposta configuração de operação de mútuo, quando os adiantamentos, de fato, restam utilizados para aumento do capital da sociedade investida”. Igualmente, o Acórdão nº 9101-004.402, da 1ª Turma da Câmara Superior de Recursos Fiscais, afirmou que “o prazo de 120 dias previsto no subitem 7.1.1 do Parecer Normativo CST 17/1984 não tem amparo legal”.
Esta uniformização jurisprudencial reveste-se de fundamental importância para conferir previsibilidade às operações empresariais e reduzir a litigiosidade tributária. Contribuintes que planejam operações de capitalização podem, com base nesta orientação consolidada, estruturar suas operações com maior segurança jurídica, desde que comprovem adequadamente a efetiva destinação dos recursos para aumento de capital.
Por fim, cumpre ressaltar que a decisão reforça a necessidade de que a administração tributária fundamente suas autuações em dispositivos legais expressos, e não em interpretações ampliativas de normas regulamentares voltadas a outros tributos. O respeito à hierarquia normativa e à reserva legal tributária constitui pilar essencial do Estado Democrático de Direito, que protege os contribuintes contra exigências tributárias desprovidas de fundamento legal adequado.
Em síntese, o Acórdão nº 3002-003.781 merece acolhida por reconhecer: (i) que o Parecer Normativo CST 17/1984 não se aplica ao IOF, por ter sido editado exclusivamente para disciplinar questões do imposto de renda; (ii) a ausência de norma legal do IOF estabelecendo prazo para capitalização de AFAC impede a cobrança do imposto fundamentada exclusivamente no descumprimento de prazo; (iii) a caracterização do AFAC depende da comprovação efetiva da capitalização mediante documentação societária e contábil adequada e (iv) o princípio da legalidade tributária impõe que exigências fiscais se fundamentem em dispositivos legais expressos, vedada a analogia ou interpretação extensiva em prejuízo do contribuinte.
Autor: João Vitor Janson (joao@charneski.com.br)