SOCIETÁRIO – ASSEMBLEIAS GERAIS – NULIDADE OU ANULABILIDADE?
STJ consolida entendimento sobre o regime jurídico de invalidades de deliberações assembleares
por Gustavo de Moraes Roehe publicado em 12/06/2024A Quarta Turma do Superior Tribunal de Justiça apreciou, em 09/04/2024, nos autos do REsp 2.095.475/SP, importante caso societário envolvendo o regime jurídico aplicável às invalidades de deliberações assembleares, quando constatadas irregularidades na realização do conclave, tais como violação à lei, erro, dolo, fraude ou simulação.
No caso concreto, trata-se de ação de responsabilidade ajuizada contra acionistas administradores de sociedade empresária por acionistas minoritários, em que se pleiteava a condenação dos requeridos a indenizar a companhia pelos prejuízos decorrentes de venda de imóvel em montante substancialmente inferior ao seu efetivo potencial econômico.
A propositura de ação de responsabilidade foi submetida à deliberação dos acionistas em Assembleia Geral Ordinária (“AGO”) realizada em 30/04/2007, nos termos do art. 159, §1º, da Lei 6.404/76 (“Lei das S.A.”), tendo sido rejeitada pela maioria dos acionistas presentes. Ademais, as contas apresentadas pela administração da companhia na ocasião foram aprovadas, sem ressalvas, exonerando de responsabilidade os administradores, salvo erro, dolo, fraude ou simulação – o denominado quitus, na forma do art. 134, §3º, da Lei das S.A.
Diante desse cenário, a ação foi julgada improcedente em primeira instância, uma vez que, em decorrência do quitus, deveria ser ajuizada ação para a anulação da assembleia que aprovou as contas da companhia antes da ação de responsabilização dos administradores, conforme previsto no art. 286 da Lei das S.A.
Em sede de apelação, o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (“TJ/SP”) adotou entendimento diverso. É que há uma peculiaridade no caso – às vésperas da realização da AGO de 30/04/2007, em 12/02/2007, um dos administradores transferiu a totalidade das suas ações à holding de sua titularidade, que então compareceu à AGO e votou favoravelmente à aprovação das contas da administração, sem ressalvas ou restrições.
No entendimento do TJ/SP, a transferência das ações teve por objetivo fraudar lei imperativa, na hipótese, o art. 115, §1º, da Lei das S.A., que veda ao administrador votar nas deliberações da assembleia geral relativas à aprovação de suas contas como administrador.
Em razão disso, concluiu o Tribunal de origem que a fraude à lei imperativa é causa de nulidade do ato, nos termos do art. 166, VI, do Código Civil. Sendo nula a aprovação das contas, deve ser afastada a condição de procedibilidade da responsabilização dos administradores – prévia anulação da deliberação assemblear. Assim, os requeridos foram condenados ao pagamento de indenização no valor de R$ 10.000.000,00 (dez milhões de reais), correspondente à diferença de preço entre a venda do imóvel realizada e a proposta mais vantajosa, apresentada pelos requerentes.
A controvérsia do caso passa pela análise do regime jurídico aplicável às invalidades de deliberações assembleares e sua aparente incompatibilidade no ordenamento jurídico – se é aplicável a disciplina prevista no art. 286 da Lei das S.A., cuja sanção é a anulabilidade do ato, ou a disciplina das nulidades dos negócios jurídicos em geral, prevista no Código Civil, mais especificamente em seu art. 166.
Em voto redigido pelo Relator Ministro Antônio Carlos Ferreira, uma primeira solução para o conflito é a aplicação do critério da especialidade, pelo qual a norma especial (Lei das S.A.) prevalece sobre a norma geral (Código Civil).
No entanto, o Ministro deu um passo adiante – não lhe parece correto aplicar o critério da especialidade de forma indistinta a toda e qualquer invalidade de deliberação assemblear, sob pena de se perpetuarem graves vícios aos quais o ordenamento jurídico geral (Código Civil) atribui a sanção de nulidade.
Se o regime de anulabilidades do art. 286 da Lei das S.A. fosse aplicável a todo e qualquer vício de deliberações assembleares, aos acionistas seria permitida a produção de quaisquer efeitos jurídicos que desejassem, caso nenhum deles viesse a impugnar o ato no prazo legalmente previsto, conduzindo a sua convalidação.
Por essa razão, entende o Ministro que “o regime especial de invalidades das deliberações assembleares tem por referência fundamental o interesse violado, isto é, o interesse jurídico tutelado ou o interesse em jogo e isso definirá a prevalência de determinada sanção ao vício”.
Desse modo, para relações intrassocietárias – entre acionistas ou entre acionistas e a sociedade –, aplica-se a legislação específica (art. 286 da Lei das S.A.), que determina a anulabilidade da deliberação tomada em assembleia geral irregularmente convocada ou instalada, violadoras da lei ou do estatuto, ou eivadas de erro, dolo, fraude ou simulação, uma vez que o interesse jurídico tutelado diz respeito somente à empresa.
De outro lado, remanesce a disciplina geral do Código Civil (art. 166) para as situações em que os efeitos das deliberações da assembleia alcancem a esfera jurídica de terceiros, levando a nulidade do ato jurídico.
A distinção é importante: o ato anulável pode ser convalidado pelo decurso do tempo, na forma do art. 169 do Código Civil. Já o ato nulo não é suscetível de confirmação, e não se submete a prazos extintivos (decadenciais ou prescricionais), conforme arts. 168 e 169 do estatuto civil.
Dessa forma, pelas conclusões adotadas pelo Relator Ministro Antônio Carlos Ferreira, a aparente fraude ao art. 115, § 1º, da Lei das S.A., procedida pelo administrador da companhia, ao transferir suas ações à holding de sua titularidade para votar a aprovação das próprias contas na AGO realizada em 30/04/2007, atinge somente interesses da empresa e não de terceiros, tratando-se, portanto, de causa de anulabilidade, consoante art. 286 da Lei das S.A.
Por essa razão, o recurso especial manejado pelos requeridos foi dado provimento pela Quarta Turma do STJ, no sentido de determinar que, no caso concreto, a ação de responsabilização do acionista administrador exige a desconstituição prévia da assembleia que aprovou as contas da administração, nos termos do art. 134, § 3º, da Lei das S.A.